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Escrevo inspirado no meu dia a dia como petroleire, da base do Litoral Paulista, e no belo artigo “Os trilhos do crime”, de Marina Oliveira, moradora de Brumadinho (MG) e articuladora social da Arquidiocese de Belo Horizonte, reproduzido ao final deste texto.
Anderson "Mancuso" do Nascimento Pereira
Engenheire de Petróleo
Presidente da ABCP e cipista no Edisa
Vinte e oito de abril foi instituído, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), como o Dia Mundial da Segurança e Saúde do Trabalho em Memória às Vítimas de Acidentes e Doenças Relacionadas ao Trabalho. A data nos convida a algumas reflexões sobre a realidade de desproteção do atual mundo do trabalho. Mas não pretendo desenvolver aqui sobre as debilidades de uma gestão tradicional de segurança, com seus padrões, códigos e regras, sustentada no punitivismo, na desintegração proposital com saúde e meio ambiente e encobertada por uma etérea manta chamada cultura de segurança.
Importante iniciar colocando, no centro das nossas reflexões, as pessoas que sofrem e sofreram qualquer forma de violência no trabalho, e como muitas delas não puderam voltar para casa depois do trabalho. Torna-se imperativo ecoar suas vozes que foram caladas.
Um acidente de trabalho impacta fortemente não só a vida da vítima, mas também as famílias e toda sociedade. Na maioria dos casos, a indenização é insuficiente perante a magnitude da dor, dos danos materiais e não-materiais e se mostra irrisória perante o que as empresas lucram com espoliação, exploração e degradação ambiental.
O realce aqui é sobre amparo, reparo, acolhimento, fortalecimento, recondicionamento, tratamento dado às vítimas do trabalho inseguro e não-saudável.
Nas últimas semanas, vieram à tona, na mídia tradicional e comercial, casos de assédio sexual na Petrobrás. Como estas vítimas foram e são acolhidas? Qual a rede de apoio existente? Geralmente, as vítimas estão em condições de trabalho vulneráveis e precarizadas pela terceirização, e qualquer iniciativa de denúncia de irregularidade e violência no trabalho pode culminar até mesmo em demissão.
Além disso, o peso e a responsabilidade de conduzir a denúncia são concentrados na vítima, e todo o processo se restringe a comissões de gestores, amputando a participação do sindicato, da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) ou de qualquer outra instituição de apoio e defesa de trabalhadores.
Vivenciamos um vazio na gestão de pessoas na empresa, todavia se mantém muito forte a característica do seu punitivismo seletivo, uma velocidade enorme para punir trabalhadores que não abaixam a cabeça para a chefia e que participam de greves, e uma lentidão para punir gestores assediadores.
Os gestores geralmente estão protegidos por diversos mecanismos e agrupamentos que existem dentro da empresa, enquanto as organizações de defesa de trabalhadores são atacadas com práticas antissindicais propagadas pela empresa entre os trabalhadores.
Desta forma, neste dia, é preciso reforçar a importância de nossa união, da nossa organização, da nossa solidariedade e amparo para todas as vítimas e fortalecer a luta em defesa da vida e do trabalho digno para todas as pessoas.
Por Marina Oliveira, moradora de Brumadinho e articuladora social da Arquidiocese de Belo Horizonte. Artigo publicado, originalmente, no site do jornal A Sirene.
Meu nome é Marina e eu sou mineira. Sou de Brumadinho. Eu fui criada romantizando o barulho do trem. Desde pequena, desenhava o trem que passava pela minha cidade. Eu chamo tudo o que é bom de “trem”. Eu fui criada pra falar com orgulho do minério, do ferro e das coisas boas que eles me trouxeram. Eu nunca estranhei esses buracos nas montanhas e nas serras da minha cidade. O trem sempre chegou vazio e saiu cheio, sem trazer nada em troca. Me formei em Relações Internacionais na PUC-Minas, no dia 24 de janeiro de 2019. Meu sonho era trabalhar na Vale. No dia 25 de janeiro, às 12h28, eu vi a Vale matar rio, matar peixe e matar gente. Nesse dia, eu comecei a problematizar os impactos de uma mineração irresponsável, que coloca o lucro acima da vida.
Eles soterraram 272 pessoas [sendo duas crianças nas barrigas de suas mães, não reconhecidas pela Vale], dezenas de casas, hortas, rio, animais, vegetações, culturas etc. Desde então, tenho atuado, contratada pela Arquidiocese de Belo Horizonte, como articuladora social das comunidades atingidas pelo crime. Meu trabalho é acompanhar as comunidades, identificar as demandas, dar os encaminhamentos possíveis e sangrar junto. Dezoito famílias ainda esperam encontrar os corpos de seus familiares para se despedirem. As buscas ainda não terminaram. Dezenas de agricultores atingidos não tiveram qualquer suporte até hoje. Muitas comunidades estão sem água por causa da contaminação dos rejeitos da barragem. O aumento da taxa de suicídio e o índice de depressão são reais.
Enquanto isso, as mineradoras gastam milhões de reais em publicidade sem concluir as reparações, indenizações e compensações. Eles se preocupam apenas com a Bolsa de Valores. Eles não querem ser responsabilizados criminalmente pelo que fizeram, pois estariam criando parâmetros internacionais para crimes minerários. Eles querem continuar cometendo crimes com impunidade. Eles gostam de comprar e de controlar todo o território. É a primeira vez que eu vejo isso: o assassino que se senta à mesma mesa da vítima e ainda mostra como vai ser daqui pra frente.
O Estado? Coitado. Preso na minério-dependência, não consegue sequer apoiar os atingidos de maneira justa. Em setembro deste ano, participei de um evento da ONU para falar de Brumadinho, no Chile. Lá, estava a representante da Vale, com seu traje social, falando sobre direitos humanos e sustentabilidade. Eles participam desses espaços para pegar o carimbo de responsabilidade social para continuar matando em outros lugares.
A pergunta que eu me faço é: para quem devo gritar? Para o Estado? Para a Vale? Para a ONU? Quem vai nos ajudar? Os interesses financeiros envolvidos são muito poderosos. Quem dera existisse uma receita para a reconstrução de uma cidade. Eles estão acostumados a romper barragem: Mariana, Brumadinho… Mas uma cidade nunca estará pronta para se ver coberta de lama de rejeito.
Eles chamam o que aconteceu de acidente, de evento. Evento, pra mim, é festa. Acidente, pra mim, é quando a gente se queima fritando ovo. O que aconteceu na minha cidade é um crime. Crime, porque houve trocas de e-mails entre a chefia para relatar a instabilidade da barragem; porque eles pressionaram a empresa terceirizada a atestar o laudo de estabilidade; porque o refeitório e o prédio administrativo ficavam logo abaixo da barragem; porque as rotas de fugas assinaladas pelo relatório de risco produzido pela empresa estavam erradas. Ou seja, quem correu para os pontos que eram considerados seguros está, hoje, soterrado.
Para quem gritar? Eu escolho gritar para vocês: jovens que serão os próximos engenheiros, advogados e deputados (talvez sejam os próximos atingidos também). Eu não acredito neles, mas eu acredito em vocês. Eu tenho o privilégio de viver a conversão real e profética, orientada pelo impacto de um crime contra as várias formas de vida. Espero que muitas outras pessoas possam também se converter. A gente não pode beber, comer e respirar minério.
A gente pode mudar. É trabalho de gerações e gerações. Mas a gente pode. Porque, se eu aprendi que o “trem” é bom, daqui pra frente, eu vou ensinar que ele é ruim. E eu jamais, jamais, vou deixar de estranhar os buracos que fizeram nas montanhas, na minha cidade e no meu coração. O trem é ruim. Ele levou nossas riquezas embora. Ele matou nosso rio. Ele levou nossos amigos à força. Ele destroçou nossa cidade.