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Oito de março: a luta das mulheres inclui todas, todos e todes, menos os que exploram e matam
07/03/2023
Redação ABCP
Apesar do dia 8 de março ter sido oficializado como o Internacional da Mulher, em 1977, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a data foi uma construção de ações concretas de mulheres trabalhadoras já a partir do fim do século XIX e início do XX. As bandeiras eram por melhores condições e direitos no trabalho e pela participação política e pelo direito ao voto.
Uma dessas lutas ocorreu, em 1908, quando mais de dez mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York, nos Estados Unidos, exigindo a redução das jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto. Tem lugar de destaque, na constituição da data, a professora e jornalista alemã Clara Zetkin (1857-1933), ativista incansável dos direitos da mulher trabalhadora.
A data também é lembrada por outros eventos, como o incêndio na fábrica de roupas Triangle Shirtwaist, em Nova York, em 1911. Uma tragédia que desnudou as terríveis condições de trabalho a que as mulheres eram submetidas. O mais mortal acidente industrial da cidade de Nova York matou 146 pessoas: 123 mulheres e 23 homens.
As chances de escapar do fogo eram mínimas, pois as saídas da fábrica eram trancadas para impedir a saída para pausas durante a jornada. A repercussão da tragédia revelou as péssimas condições de trabalho das vítimas: cargas horárias que chegavam a mais de 16 horas diárias, salários baixos e locais insalubres.
Outro episódio fundamental foi a greve de mulheres russas, em 1917, por “pão e paz”. Aproximadamente 90 mil mulheres russas – entre operárias e esposas de soldados – manifestaram-se em São Petersburgo contra o czar Nicolau II, as más condições de trabalho, a fome e a participação do país na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Após quatro dias de manifestações, o czar foi forçado a abdicar, e o governo provisório concedeu às mulheres o direito ao voto.
Naturalização da discriminação
O discurso liberal tenta naturalizar tudo com relação à economia capitalista – a autorregulação do mercado, é um deles –, da mesma forma há uma naturalização ainda mais perversa quando se trata do corpo da mulher. Em seu livro “O Ponto Zero da Revolução – Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista”, Silvia Federici observa que o “capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem remuneração”, ou que o trabalho doméstico não é trabalho, pois é “um trabalho de amor”.
O fim da naturalização de que há uma hierarquização de valor dos corpos na economia liberal – o branco vale um pouco mais do que o preto, o homem vale um pouco mais do que a mulher etc. – coloca em xeque que os corpos das mulheres (e ainda pior das mulheres pretas) são feitos para servir seja lá de que forma for, são menos valorosos física e intelectualmente no “mercado de trabalho”, são feitos para cuidar do outro por amor, está na ordem do dia do 8 de março de 2023.
Federici observa que a luta feminista não está em segundo plano, mas é o ponto zero da revolução.
Tempos atuais
Em 2023, na celebração do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, as mulheres reafirmam a luta por um mundo livre de estereótipos, violência e com oportunidades sem discriminação no trabalho e na vida social, e em defesa do planeta.
A população do Brasil, conforme a PNAD Contínua de 2021 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é composta por 51,1% de mulheres. No mercado de trabalho, o País precisa avançar em pautas que tenham como objetivo a valorização das mulheres. Atualmente, o Brasil ocupa a 78ª posição no ranking sobre igualdade de gênero, segundo o Índice de Gênero dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2022.
“O Brasil está diante de um aumento de violência contra a mulher. Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio do Instituto Datafolha revelou que todas as formas de violência desse tipo cresceram no período recente. "Foram mais de 18 milhões de mulheres vítimas de violência no último ano. São mais de 50 mil vítimas por dia, um estádio de futebol lotado", afirma Samira Bueno, diretora executiva do Fórum. Ao mesmo tempo, o estudo revela que uma a cada três mulheres brasileiras (33,4%) com mais de 16 anos já sofreu violência física e/ou sexual de parceiros ou ex-parceiros. O índice é maior que a média global, de 27%.” (UOL, 'Brasil está diante de um aumento de violência contra a mulher', diz pesquisadora. 03/03/2023)
Entrevistas de ativistas da Petrobrás
A ABCP entrevistou duas trabalhadoras da Petrobrás, e ativistas feministas, base do Litoral Paulista, Suseli de Marchi Santos e Fabíola Calefi. Elas falam sobre a importância da data para os tempos atuais em que ainda se vive numa sociedade patriarcal construída em cima da violência, do desrespeito e da discriminação contra as mulheres. Somado a isso, elas destacam que a força motriz do Dia Internacional da Mulher Trabalhadora está mais viva e necessária do que nunca para todas, todos e todes que lutam por uma sociedade sem a exploração humana, sem a destruição do meio ambiente, sem o racismo, sem o fascismo causados e por todos os crimes humanos, sociais, econômicos e ambientais cometidos pela economia capitalista.
Suseli de Marchi Santos
ABCP – Quem é a Suseli?
Sou uma mulher brasileira trabalhadora, filha de pequenos agricultores do interior paulista. Estou em constante construção e reconstrução e vivo, ainda, num período histórico e em um lugar do mundo onde a vida é muito difícil para a classe trabalhadora, especialmente para as mulheres. Reconheço, contudo, minha atual situação como um “privilégio” de uma mulher branca, empregada da Petrobrás, engenheira ambiental.
Coloco privilégio entre aspas, pois considerar um privilégio ser menos explorada do que outras(os) trabalhadoras(es) é uma afronta para quem luta pelo fim da exploração do trabalho. Para quem é ecossocialista como eu.
Por isso, tenho me dedicado a identificar e combater as opressões e a construir outro mundo, mesmo com todas as adversidades que o Capital impõe, uma delas é a própria rotina de ser responsável por duas crianças pequenas, junto com meu companheiro, longe de qualquer rede de apoio.
ABCP – Como você vê a tentativa de apropriação da data, transformando-a numa data festiva, como vemos empresas e estabelecimentos presenteando com flores e produtos cosméticos empregadas e clientes?
Avalio como uma estratégia histórica de silenciamento, de apagamento da luta das mulheres.
Vejo pessoas que se colocam como esquerda e reconhecem a opressão contra as mulheres, mas que defendem esse tipo de ação no dia 8 de março, como a entrega de flores. Quero acreditar que são bem intencionadas.
Mas é um tipo de ação que tenta apagar, no espaço público, o significado da data. O 8 de março nos lembra que não podemos aceitar a opressão e a submissão das mulheres. É uma data de luta pela igualdade de direitos e condições de trabalho. Dar flores e presentes sem falar de luta é um desserviço à luta das mulheres trabalhadores. E hoje, mais do que nunca, as nossas bandeiras precisam estar erguidas em todos os espaços, no trabalho, na política, na escola, nas ruas e em nossas casas.
Infelizmente, temos pouco para comemorar. O aumento dos casos de feminicídio mostra que estamos falando do nosso direito de viver.
Então, em vez de flores ou produtos de beleza, precisamos receber engajamento concreto de toda a classe trabalhadora em defesa da mulher. A luta não é apenas nossa, é de toda a classe, apesar do nosso protagonismo.
ABCP – Ao longo da história do capitalismo, e também nas lutas sociais em defesa de direitos, sempre enfrentamos muitas formas de controle e manipulação sobre os nossos saberes, dores, corpos e sexualidade. Como você vê a luta das mulheres dentro desse contexto? O que é necessário fazer para que a voz das mulheres tenha protagonismo em qualquer luta e não seja objeto de nenhum tipo de “tradução” ou desconsideração?
Enquanto tivermos uma sociedade estruturada na exploração do trabalho sempre teremos grupos cujas vozes serão silenciadas, desconsideradas, dentro da própria classe trabalhadora. É o que acontece com a voz das mulheres, das populações negra e LGBTQIA+, das pessoas com deficiência (PcD) e outros grupos oprimidos.
Infelizmente, vivenciamos muitos(as) companheiros(as) trabalhadores(as) reproduzindo opressões que só interessam ao Capital, buscando manter privilégios que são dados a determinados grupos, notadamente os homens brancos héteros.
Ao mesmo tempo, cabe ressaltar que não lutamos para passar de oprimidas para opressoras. Definitivamente, não queremos reproduzir relações e valores criados na sociedade patriarcal capitalista. É absolutamente importante compreender isso para avançarmos na luta contra o controle do Capital em cima das nossas vidas, nossos corpos e mentes.
ABCP – Nesse sentido, como você vê a luta contra um mundo cada vez mais assombrado pela presença da extrema-direita? Como lutar com as diferenças – sem defini-las como fraquezas ou fortalezas – sem que isso signifique dividir a luta por um mundo melhor?
Há muito tempo, vejo a luta feminista e de todos os grupos oprimidos como uma luta comum contra o Capital e a exploração do trabalho, geradores de todas as opressões e destruição ambiental.
Precisamos somar as especificidades das pautas de cada grupo numa luta grandiosa, firme e forte contra o que sofremos dia a dia. Precisamos nos somar e não nos dividir – mas isso não significa hierarquizar o que é mais ou menos importante, o que vem antes ou depois.
Não vejo como a classe trabalhadora possa avançar sem reconhecer as distintas opressões no interior da classe e que as mulheres, as populações negra e LBTQIA+, as pessoas com deficiência sofrem um nível de opressão e exploração ainda maior. Nossas pautas precisam ser vistas!
Abafar ou reduzir a importância dessas pautas não ajudará a combater a extrema-direita, o braço armado do neoliberalismo. Ao contrário, o combate à extrema-direita precisa ser feito com todas essas pautas juntas.
Fabíola Calefi
ABCP – Inicialmente, também queremos conhecer mais sobre a Fabíola.
Sou técnica ambiental, bióloga e mestre em biodiversidade. Atuo na Petrobrás desde 2011, como técnica ambiental. Em 2011, me sindicalizei e já participei da formação da chapa que concorreu à eleição e desde então, faço parte do Sindipetro do Litoral Paulista.
ABCP - Como você destacaria a importância do 8M, o Dia Internacional de Luta da Mulher Trabalhadora, no Brasil de 2023 – quando o discurso de extrema-direita assombra e destrói direitos e a própria vida? Qual o lugar da mulher nessa luta?
O 8 de março é um marco na luta das mulheres trabalhadoras por direitos e contra qualquer tipo de discriminação. As empresas tentam, de todas as formas, mudar o sentido e a origem da data, criando uma concepção de festejo que nada tem a ver com a real história por direitos e igualdade.
As empresas, e a sociedade patriarcal, tentam mascarar o sentido de que o 8 de março nasceu de protestos, greves, manifestações das trabalhadoras já em meados do século XIX. Querem despolitizar a data e colocar no lugar uma celebração festiva que não existe com entrega de presentes que reforçam a imagem da mulher dócil e objeto.
Por isso, mantemos a chama viva em relação à data, mostrando que o dia é de luta enquanto formos, e como somos, desrespeitadas, mortas e discriminadas. Não há possibilidade nenhuma de trocarmos nossa história por um batom ou uma rosa.
O 8 de março nos mantém conectadas ao objetivo de termos uma outro tipo de sociedade, que preze pelo respeito às mulheres, à justiça, ao meio ambiente e contra todo tipo de discriminação, intolerância e racismo.
ABCP - O 8 de Março é uma data que surgiu de lutas concretas e fundamentais das trabalhadoras contra a exploração e repressão do capital, principalmente no início do século XX. Em pleno século XXI, a data tenta ser sequestrada como um evento “festivo”, e vemos empresas entregando flores e até produtos de beleza para suas empregadas. Quais os símbolos e história que precisamos resgatar para combater esse sequestro?
É muito importante que, no local de trabalho, os trabalhadores, as trabalhadoras, os sindicatos, as organizações de luta promovam um debate sincero e honesto sobre os problemas que ainda hoje as mulheres enfrentam nos locais de trabalho, como discriminação, falta de recursos.
As mulheres que amamentam e trabalham na indústria muitas vezes não têm local para coletar o leite nem armazenar. Em muitos locais não há banheiros e vestiários femininos.
A empresa imagina ainda que as mulheres serão incapazes de chegar àqueles locais que hoje, majoritariamente são ocupados por homens, em cargos ocupados por homens. É importante que a gente mantenha vivo esse debate nos locais de trabalho, nesta data.
É muito importante fazer essa discussão para que as pessoas entendam que ainda há muitos problemas, muita desigualdade e que esse dia deve servir para que a gente fortaleça essa luta de todos os trabalhadores para melhorar as condições no local de trabalho.
ABCP - Fabíola, como você insere a luta feminista na luta contra as forças do capital, hoje baseadas nos cânones neoliberais que se amparam na extrema-direita, na evangelização neopentecostal baseada no esforço e competência individuais para se alcançar o sucesso e o enriquecimento para a ampliação do consumo sinalizando a salvação? Ou seja, numa conformação social, econômica e religiosa ainda mais adversa aos corpos e saberes das mulheres?
Infelizmente, nos últimos anos, tivemos um retrocesso muito grande nos espaços de debate na sociedade, seja no trabalho ou fora dele, em relação ao direito das mulheres.
Foram anos muito ruins em que vigorou um discurso que vai contra tudo o que a gente havia lutado e conquistado, avançado minimamente em relação ao direito das mulheres, ao debate dos problemas reais das mulheres trabalhadoras.
Nesse retrocesso, o discurso contra a mulher ganhou um absurdo espaço e vimos aumentar o número de feminicídio, de violência doméstica e também no trabalho, estupro.
As empresas, o capital, a igreja e a extrema-direita odeiam as mulheres, reservam a nós os piores lugares e discursos que retrocedem em muito nos nossos direitos. Ao mesmo tempo, que graça a impunidade para tantos crimes cometidos.
Por isso, o sentido de luta e unidade das mulheres está mais vivo do que nunca no 8 de março.
ABCP - Como lutar com as diferenças – sem defini-las como fraquezas ou fortalezas – sem que isso signifique dividir a luta por um mundo melhor, como alguns criticam as lutas identitárias?
Entendo que o Estado nacional também é parte fundamental para inibir, reduzir e acabar com os discursos de ódio praticamente despejados todos os dias contra as mulheres.
Precisamos que no Estado nacional, instituições públicas de poder, os governos em todos os níveis (municipal, estadual e nacional) o debate sobre a mulher seja colocado sem nenhum viés machista, e se retome, com seriedade, discussões sobre temas importantes, como direito ao aborto, à igualdade salarial, de cargo e função nos ambientes de trabalho, melhores condições de trabalho. Que as mulheres não fiquem restritas aos cargos e funções mais precarizadas e definidas como “naturalmente” de mulher.
Um ponto fundamental é discutir a situação das mulheres negras que são as que são mais prejudicadas e menos conseguem vagas com melhores condições e que até mesmo consigam ter condições para disputar essas vagas. O Estado deve implantar políticas públicas que promovam mais igualdade e reduzam – ou melhor, acabem – com as desigualdades sociais e econômicas seculares no Brasil, que vemos desde os tempos da colonização portuguesa com a pior chaga nossa que foi a escravização dos corpos pretos.
Por outro lado, também precisamos identificar como esse discurso patriarcal também perpassa o olhar e a voz dos homens trabalhadores que estão ao nosso lado nos locais de trabalho e em outros espaços políticos e sociais.
ABCP - A revolução é feminista?
A revolução, ou seja, a mudança desta sociedade estruturada no poder do homem branco e de elite e do capital, é imprescindível para que o respeito às mulheres, aos negros, ao meio ambiente, à justiça social, ao LGBTQIA+, aos povos originários, ou seja, para que a própria sobrevivência da humanidade e do planeta seja realmente possível.
A revolução é feminista na medida em que trazemos esse olhar ampliado para a luta. A revolução feminista não exclui ninguém, ela é, em sua origem, de inclusão.
Se entendêssemos a força que temos. Somos a força produtiva. O mundo gira, produz, enriquece à custa do trabalho de mulheres brancas e pretas, de homens brancos e pretos, de pessoas com deficiência (PcDs), de pessoas LGBTQIA+, no entanto toda essa exploração não acaba com a miséria, mas aumenta a concentração da riqueza nas mãos de alguns poucos. Na revolução feminista cabem todas, todos e todes, só não estão incluídos os que hoje nos exploram e nos matam.
Fontes consultadas
Aventuras na História. Pão e paz: o protesto feminino que aterrorizou o czar Nicolau II. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/historia-pao-e-paz-o-protesto-feminino-que-aterrorizou-o-czar-nicolau-ii.phtml?utm_source=site&utm_medium=txt&utm_campaign=copypaste
Biblioteca do Cetens da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 08 de março – Dia Internacional das Mulheres. Disponível em: https://ufrb.edu.br/bibliotecacetens/noticias/267-08-de-marco-dia-internacional-das-mulheres#
FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
ONU Mulheres. Dia Internacional da Mulher. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/noticias/dia-internacional-das-mulheres/
ONU Brasil. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5