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Para quem luta, o esforço de vasculhar o passado do movimento sindical não se limita a resgatar datas e nomes vinculados a acontecimentos que marcaram as linhas do tempo, nem é uma forma de lembrar saudosamente o que foi sepultado pelo passar dos anos. Repercorrer os caminhos que conduzem ao presente permite perceber como a classe construiu suas lutas em condições bem mais adversas do que as atuais, ajuda a identificar os erros e acertos das escolhas dos sindicatos, a levantar os problemas criados pelas mudanças nos processos de trabalho e pelas políticas gerenciais que moldaram o trabalhador coletivo. Olhar para trás é fazer um inventário que permite conhecer as fragilidades e as possibilidades do presente no qual vamos dar os passos para o futuro.
Entre os aspectos preocupantes deste inventário, está o fato de que os dirigentes sindicais, em sua grande maioria, se tornaram generais sem exército. Agendas e celulares na mão, seguem de uma reunião para outra, mantêm contatos com assessores e membros das cúpulas dos movimentos, defendem teses, traçam estratégias e pensam formas de luta, mas todo este esforço esbarra num problema crucial: a falta de soldados que, nos locais de trabalho, transformam planos em ações que mudam a realidade.
O sindicalismo de agitação tirou o dirigente do cotidiano do trabalho, esvaziou a tradição de luta que formava os novos militantes e abriu um espaço gigantesco para que empresários e gerentes disputassem os corações e as mentes dos seus funcionários. Os resultados estão sob os olhos de todos: trabalhadores extremamente individualistas, incapazes de se defender, que assumem as metas da empresa para evidenciar os méritos pessoais e aceitam os sacrifícios exigidos com a naturalidade de quem vê o sofrimento como elemento inseparável da sua dedicação ao trabalho.
Com o individualismo em graus nunca antes conhecidos, o local de trabalho se transformou no palco de uma guerra de todos contra todos. No embate pelos primeiros lugares, a solidariedade passou a ser considerada uma atitude que prejudica os competidores e as relações entre os colegas a serem pautadas pelo oportunismo e a desconfiança. A primeira vítima fatal deste processo foi o sentimento de coletividade sem o qual não faz sentido pensar numa causa comum.
Servo obediente do capital, o trabalhador segue alimentando expectativas irreais em relação as suas possibilidades de futuro na empresa e vê os movimentos reivindicatórios como ameaça aos seus planos individuais e não como um caminho para derrotar os sofrimentos que marcam a labuta diária.
Imagem reproduzida a partir do site Amambai Notícias.
Diante deste quadro, de nada serve lamentarmos a impotência diante da precarização do trabalho e da retirada dos direitos. A realidade impõe que conheçamos profundamente este “novo” trabalhador para podermos estabelecer um diálogo com a sua forma de ver o mundo, para construirmos dúvidas nas certezas que o levam a obedecer ao capital.
Longe de ser uma tarefa própria das agências de pesquisa, falamos de um conhecimento que só é possível através de uma inserção no cotidiano do trabalho, de uma relação humana que faz da amizade e da solidariedade os passos que levam a conquistar uma confiança sem a qual a palavra do dirigente sindical continuará não produzindo os efeitos esperados.
Não estamos defendendo uma volta às bases no sentido de visitar com mais frequência os locais de trabalho e sim de os dirigentes serem realmente de base, ou seja, de trabalharem ombro a ombro com os operários da categoria para sentirem e partilharem com eles o que as palavras nunca conseguirão traduzir.
O fato de o sindicato conhecer a realidade das empresas e dos empregados, ter uma crítica abrangente em relação aos problemas criados pelas novas relações de trabalho e manter uma postura classista ao defender os direitos da categoria não garante que suas ideias façam sentido para a maneira como o trabalhador coletivo vê a realidade e se posiciona diante dela. O momento exige um esforço concentrado para entender o que se vê pelos olhos da categoria e isso só é possível numa convivência que permite captar a dinâmica na qual se movimentam as necessidades e as expectativas dos trabalhadores, a forma como interpretam os problemas diários, o sentido que dão às contradições que, ao trazerem à tona suas fragilidades, revelam as angústias que questionam as crenças sobre as quais se erguem as suas seguranças.
Este caminho é o único que permite entender o que faz sentido para os trabalhadores e tecer com eles um diálogo no qual não são objetos passivos de um discurso e sim sujeitos de um processo de preparação para a luta em cujos passos reconhecem as marcas de suas ideias e vivências.
Ter esta sintonia de olhares com a base é a condição essencial para que os dirigentes sindicais sejam vistos como lideranças que organizam o descontentamento para que a rebeldia e a resistência tenham voz e vez. Sem esta sintonia, os conteúdos dos nossos boletins e dos discursos no carro de som, os objetivos das bandeiras de luta em voltas das quais planejamos as campanhas salariais, os esforços para viabilizar as deliberações das assembleias e dos congressos continuarão sendo vistos como algo fora da realidade por trabalhadores que não encontram neles um vínculo com as suas reais inquietações.
Por isso, conhecer o terreno onde pisamos é a principal tarefa da atualidade. Ao mapear os aspectos do trabalho que despertam contrariedade e indignação, ao entender a razão de ser do medo que grassa entre os operários e ao apontar o momento em que as pessoas são mais receptivas aos questionamentos trazidos pelo sindicato, a inserção do dirigente possibilitará identificar as mediações que permitem acordar a indignação e traduzir em ações os planos que se opõem às investidas empresariais. Somente assim o diálogo com a base transformará os sindicatos em interlocutores de uma leitura coletiva do trabalho e das lutas que ela impõe.
À diferença do passado, não faltam meios materiais, estudos, teses, estruturas e instâncias de representação que ajudem nesta tarefa. Faltam pessoas que se dediquem a organizar os trabalhadores vivendo com eles o cotidiano do trabalho para ganhar seus corações e mentes e transformar os descontentamentos de hoje nas lutas de amanhã.
Leia também
* Parte I - Pensando o movimento sindical: entrevista Emílio Gennari
* Parte II – Emílio Gennari fala sobre os caminhos para a luta