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O governo Bolsonaro/Guedes acaba de impor ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) a decisão de concluir o esquartejamento e a venda para grupos monopolistas estrangeiros de toda a estrutura de produção e distribuição de gás natural montada no país nas últimas décadas. À essa operação criminosa de desmonte do patrimônio público eles estão dando o pomposo nome de “liberalização do mercado de gás natural no país”.
Segundo Paulo Guedes, “as medidas levarão a uma quebra de dois monopólios, na produção e na distribuição de gás, o que deve baixar o preço da energia”. “Uma queda de 40% no custo da energia”, apontou o ministro, que, em viagem recente ao EUA, prometeu vender tudo o que for público no Brasil. “Estamos vendendo tudo”, disse ele, em jantar oferecido por Bolsonaro a setores da direita americana, durante a viagem dos dois àquele país.
Para o professor Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia da USP (IEE), e ex-diretor de Gás e Energia da Petrobrás, “os números apresentados por Paulo Guedes sobre o setor de gás natural significam duas coisas. Uma que o ministro vive totalmente fora da realidade, ou seja, num mundo de fantasia, que não tem nada a ver com a indústria do gás natural do país, e a outra, é que, com essas afirmações, ele demonstra que não entende absolutamente nada sobre o assunto que está falando”.
“O ministro precisa explicar como fez essas contas sobre os preços do gás. Como chegou a esses números e a essas reduções de preços?”, cobrou o especialista. “Não haverá redução de preços”, denuncia.
Ildo Sauer acrescentou que “os monopólios que, segundo Guedes, seriam quebrados, para que houvesse a suposta queda dos preços, simplesmente, não existem”.
“A Petrobrás não detém monopólio nenhum a ser quebrado. É tudo mentira deste governo ultraliberal”, denunciou.
PRODUÇÃO
Além da Petrobrás, o país tem cerca de 30 outras empresas que produzem gás natural. A estatal, logicamente, pelo nível de investimento que realiza na extração de petróleo e gás, responde pela maior parte da produção. Em abril, por exemplo, cerca de 98% do gás natural produzido no Brasil foi fruto do trabalho da Petrobrás.
É na produção da Petrobrás que o governo quer mexer. A ideia é passar tudo para a iniciativa privada, de preferência estrangeira. “Abrir o mercado”, segundo Guedes, é entregar para os monopólios privados tudo o que a Petrobrás construiu.
As empresas, como a Total E&P do Brasil, Shell Brasil, Petro Rio Jaguar, Equinor Brasil e Queiroz Galvão, estão há muito tempo liberadas para investir e ampliar a sua produção de gás no Brasil. Não há nenhuma restrição aos seus investimentos na produção de gás natural. No entanto, juntas elas são responsáveis por cerca de 1,5% do total da produção nacional.
Elas não investem um milésimo do que fez a Petrobrás nas últimas décadas, e continua a fazer, no setor de produção de gás. Essas empresas privadas estão livres para concorrer à vontade, não há monopólio nenhum e nem restrições aos seus investimentos.
Portanto, o problema não é a necessidade de quebrar um monopólio que não existe. O que existe são os investimentos da Petrobrás.
DISTRIBUIÇÃO
Ido Sauer reafirma que não há monopólio da Petrobrás na distribuição do gás natural no Brasil, como quer fazer crer o governo. “A distribuição de gás natural no Brasil não está nas mãos da Petrobrás como afirma o ministro Guedes”, ressalta o professor. “Os três principais mercados de gás natural do país, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais estão nas mãos de grupos privados”, informa Sauer.
A Petrobrás quase não tem participação nas empresas estaduais. O estado de São Paulo é o único abastecido por mais de uma companhia.
As empresas estaduais são: Sulgás (RS), SCGÁS (SC), Compagas (PR), MSGÁS (MS), Goiasgás (GO), Rongas (RO), CEBGAS (DF), MTGás (MT), Cigás (AM), Gás do Pará (PA), Gasap (AP), Gasmar (MA), Gaspisa (PI), Cegás (CE), Copergás (PE), Potigas (RN), PBGÁS (PB), Bahiagás (BA), ALGÁS (AL), Sergas (SE), Gasmig (MG), Comgas (SP) e GasBrasiliano (SP), Ceg (RJ), Ceg Rio (RJ) e Gas Natural Fenosa (SP) – as três últimas compõem a Naturgy.
GASODUTOS
Sobre o transporte é a mesma coisa, avalia Ildo Sauer. “Os gasodutos, que eram da Petrobrás foram vendidos. Agora eles passaram a ser alugados pela própria Petrobrás junto a empresas privadas” observou. Também não há monopólio da Petrobrás nos transportes.
O professor lembra que no transporte de gás também não há monopólio nenhum. “A Petrobrás foi obrigada a vender suas redes de gasodutos e passou a ter que pagar para empresas privadas estrangeiras para transportar o gás produzido por ela”.
“Não há, portanto, também na área de transporte de gás, monopólio da Petrobrás a ser quebrado”, destaca. “Isso é uma falácia”, observa o professor. “O ministro, portanto, está em outro mundo que não o nosso quando diz essas idiotices”, afirma o professor da USP. “O ministro Guedes tem que explicar é quem vai fazer os investimentos pesados que são necessários para a ampliação do setor”, cobrou Sauer.
“Os gasodutos estão transportando gás natural e não há ociosidade. Há contratos firmados. A Petrobrás está pagando para transportar o gás produzido por ela”, acrescentou o professor. “Para ampliar o mercado de gás no país serão necessários mais gasodutos, mais investimentos em infraestrutura de escoamento da produção para que o gás possa ser levado até as áreas de consumo”, disse o engenheiro.
“Se o que eles quisessem fosse realmente ampliar o mercado e o volume de gás natural transportado, teriam que estar discutindo os investimentos necessários para essa ampliação. E não vir com essa conversa de quebra de monopólios que não existem”, advertiu Sauer.
“Eles não podem impedir a Petrobrás de contratar os gasodutos das empresas que a adquiriram – depois das privatizações – e transportar o seu gás. Mas, ao que tudo indica, é isso o que eles estão querendo, e chamando de “quebra de monopólio”, acrescentou.
O professor da USP denuncia essa intenção e questiona o ministro sobre quem fará os investimentos necessários em infraestrutura para a ampliação do mercado. Até agora quem fez foi a Petrobrás.
“Estes são investimentos que necessitam de um tempo de maturação, até que o mercado se consolide”, explicou o especialista. “A indústria do gás é um setor que exige investimentos pesados para garantir que o produto chegue ao consumidor final. Tem que sair dos locais de produção e tem que chegar até o consumidor final, lá na ponta. São grandes investimentos em infraestrutura. E tem que haver retorno do capital investido”, explicou.
Sauer argumentou que “este é um setor que, para se consolidar, precisa também de coordenação entre a criação do mercado consumidor e os investimentos necessários em infraestrutura”.
“Tem que construir o mercado, garantir preços competitivos, para que possa haver os investimentos na criação da infraestrutura para a distribuição do produto”, disse. “É preciso coordenação das ações, e não há nada disso nos planos apresentados por este governo.
Os atuais governantes não entendem nada desse assunto”, ponderou o especialista. “Não entendem isso nem do ponto de vista das relações capitalistas”, ironizou.
Sauer acrescentou ainda que “sem uma boa coordenação das ações não há como criar a o mercado de consumo e a infraestrutura na área do gás”. Na indústria, que hoje consome 52% do gás produzido, há, segundo Sauer, outras alternativas de energia. “Os industriais não ficam reféns do gás natural. Eles têm outras alternativas e utilizam aquela que for mais barata. Os projetos de gás têm que ser planejados para que haja a conquista desse mercado de consumo”, argumenta Ildo Sauer.
“É necessário criar a demanda para que os investimentos possam ser feitos, e o preço só se tornará atraente quando houver um bom volume a ser transportado para o consumo”, insistiu.
“Nós, quando fizemos o plano de gás para o Brasil, além de construirmos os gasodutos, tínhamos tudo isso em mente, mas os planos de ampliação da produção e do consumo de gás natural no Brasil foram abandonados pelos governos Lula e Dilma e, agora, estão sendo literalmente dilapidados pelos ultraliberais do governo Bolsonaro”.
Segundo os dados mais recentes da ANP, em abril o Brasil produziu 113 milhões de metros cúbicos por dia de gás natural. Em todo o ano de 2018, foram produzidos 40,8 bilhões de metros cúbicos, uma média diária de 111 milhões de metros cúbicos ao dia.
O gás natural pode ser usado na área de transportes, através do uso em veículos, substituindo o petróleo e o diesel pelo gás natural veicular (GNV), que é um subproduto do gás natural. Nas indústrias, é utilizado como fonte de geração de energia. A grande consumidora de gás natural no país, como dissemos, é a indústria, que usa 52% do total produzido.
As fábricas utilizam o gás como combustível para fornecimento de calor e geração de eletricidade, mas também como matéria-prima nos setores químico e petroquímico, principalmente para a produção de metanol e de fertilizantes. É usado ainda como redutor siderúrgico na fabricação de aço.
Em seguida, com 33%, está o setor de geração elétrica, com as termelétricas. Depois vem o uso como combustível para transporte (GNV), com 9%. Outros 4% são utilizados por cogeração de energia (junto com outros combustíveis), enquanto o uso residencial (em fogões e para aquecimento de chuveiros, por exemplo) e o feito por estabelecimentos comerciais respondem, cada um, por apenas 1% do consumo total.
O gás natural que chega à residência dos consumidores é o gás encanado. Já o chamado gás de cozinha, vendido em botijões, é de outro tipo: o gás liquefeito de petróleo (GLP). O gás de cozinha é armazenado sob a forma líquida em botijões ou cilindros de tamanhos variados, desde os pequenos e portáteis de 2 quilos aos grandes cilindros subterrâneos com toneladas do gás. O primeiro é composto principalmente por metano e etano, enquanto o segundo é uma mistura de hidrocarbonetos, entre eles os gases butano e propano.
A pesquisadora da FGV Energia, Fernanda Delgado, diz que não vê como poderiam ser feitos cálculos de queda de preços, como esses que Paulo Guedes apresenta. “São processos industriais diferentes, formas de distribuir diferentes”, diz ela. Até mesmo o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires, lobista de multinacionais, contesta a redução dos preços alardeada por Guedes. “O GLP é um derivado [de petróleo], e quem fixa preço de derivado é o mercado internacional”, diz ele.
ESTADOS
“Quem regula o setor são órgãos estaduais, como determina a Constituição, a Petrobrás não tem nenhuma participação neste processo”, afirmou o professor da USP. “A Petrobrás tem participação em algumas poucas empresas, mas sem controle acionário”, explica. “Tirar a regulação das empresas das mãos dos estados, como Guedes diz que pretende fazer, é uma decisão que teria que alterar a Constituição”, explicou.
O ex-diretor da Petrobrás também frisou que a questão do preço “não é simples como afirma Paulo Guedes”. Segundo ele “o preço de referência do produto para o consumo final é aquele que é praticado no mercado internacional”. “Na comercialização dos EUA, quando são levados em conta o processamento, o transporte e outros custos operacionais, esse preço chega ao final a 6,5 ou 7 dólares por milhões de BTUs”, estima Ildo Sauer.
Na Europa, o preço final gira também em torno de 7 dólares por milhão de BTUs. Para Ildo Sauer, “esses são os parâmetros que vão condicionar os preços finais e o tamanho do mercado e, consequentemente, os níveis de investimento no setor”. “Tem que haver retorno para quem investe e tem que ter preço que atraia o consumidor”, argumenta.
Guedes alardeou que vai pegar as três fontes diferentes de gás existentes, pré-sal, Bolívia e Argentina, e “jogar tudo numa estrutura”. “Isso que deve reduzir o preço na energia”, diz ele. Só que, o que ele chama de ‘estrutura’ é o que Ido Sauer mostra que está sendo usada a plena capacidade. Portanto, a Petrobrás não poderá parar de transportar gás para que outros transportem. Haverá necessidade de novos investimentos para implementar o setor. Por isso, Sauer cobra do ministro, primeiro “de onde virão os investimentos” e “que cálculos são esses que falam em redução de 40% nos preços”.
Como não há monopólio nenhum da Petrobrás a ser quebrado, quando o governo diz que está ‘fazendo gestões’ junto ao Conselho Administrativo de Defesa Economica (Cade) para “abrir o mercado do setor”, o que eles estão planejando de fato é tirar a produção das mãos da Petrobrás.
Por isso, Ildo Sauer denuncia o plano do governo e cobra de Guedes. “Ele tem que mostrar os números, e como ele chegou nesses valores de redução de preços”, diz. Toda essa conversa de Guedes, segundo o professor, “não passa de fantasia e de fanfarronice do governo”, concluiu o professor Ildo Sauer.
SÉRGIO CRUZ